Prevenção e tratamento de complicações podológicas da Diabetes: o papel do Podologista e a importância do trabalho em equipa

 

 As opiniões expressas são responsabilidade dos autores e não vinculam a Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa-Lisboa

 

Crónica: Matilde Monteiro-Soares e João Martiniano

 

De acordo com Federação Internacional de Diabetes, Portugal é dos países com uma prevalência de Diabetes mais elevada da União Europeia (9.8 versus 6.2% de média europeia). Esta doença crónica, quando insuficientemente controlada, pode originar diversas complicações macro e microvasculares, sendo de salientar a nível do membro inferior o desenvolvimento de doença arterial periférica, neuropatia e deformidades que podem culminar em úlceras e amputações.

 

Estas complicações a nível do membro inferior representam elevados custos para o Sistema Nacional de Saúde, assim como uma importante diminuição na qualidade de vida do indivíduo e dos seus familiares, devido a um conjunto de situações frequentemente associadas com esta patologia como são a dor persistente, mobilidade reduzida, limitação nas atividades sociais e relacionamentos.

 

 

"...todos os anos cerca de 1000 amputações dos membros inferiores são realizadas em Portugal..."

 

 

De acordo com o Relatório Anual do Observatório da Diabetes (edição de 2019), todos os anos cerca de 1000 amputações dos membros inferiores são realizadas em Portugal, sendo que aproximadamente um terço são major. A nível mundial considera-se que cerca de 8 a 10 milhões de pessoas sofrem de complicações de Pé Diabético. Em Inglaterra, estima-se que os custos associados com a prevenção e tratamento destas complicações seja superior ao conjunto dos gastos com cancro do pulmão, próstata e da mama.

 

As pessoas com Diabetes têm um risco de sofrer uma amputação 15 a 46 vezes superior às pessoas sem Diabetes. E, uma vez ocorrendo uma amputação, o risco de nova amputação é de 25% a 3 anos e de 68% a 5 anos e a sobrevivência diminui de 70 para 41%, respetivamente. Assim, estas pessoas apresentam uma taxa de mortalidade equiparável às pessoas com doença oncológica (em média de 31% a 5 anos), com uma sobrevida mediana de 40 a 55 meses.

 

Com uma recorrência de ulceração de 50% em menos de 1 ano, a equipa de David Armstrong (Podiatra) sugere a utilização do termo de “remissão” quando alguém com história prévia de úlcera de Pé Diabético se encontra cicatrizada e sem nenhuma lesão ativa.

 

Diversos estudos indicam que as pessoas após amputação major do membro inferior reportam uma qualidade de vida inferior em comparação com pessoas com doença crónica renal e com necessidade de diálise, ou pessoas com cegueira.

 

 

"Sicco Bus e Jaap van Netten, referem que até 75% das úlceras de Pé Diabético são passíveis de ser prevenidas…"

 

 

O impacto que as complicações de Pé Diabético podem ter são gritantes e exigem medidas eficazes urgentes! Sicco Bus e Jaap van Netten, referem que até 75% das úlceras de Pé Diabético são passíveis de ser prevenidas…se mudarmos o paradigma de que por cada 10 euros gastos na cicatrização de úlcera apenas 1 euro é investido na sua prevenção.

 

As diversas recomendações nacionais e internacionais apontam para a necessidade de uma correta identificação e descrição do pé em risco, uma alocação adequada dos recursos e comunicação interprofissional eficiente. Estas recomendações preconizam que o exame podológico dos indivíduos com Diabetes deve originar a sua estratificação pelo seu grau de risco de ulceração de acordo com a classificação do International Working Group on Diabetic Foot, sendo que o nível de cuidados e a periodicidade da vigilância deve ser de acordo com essa classificação.

 

A existência de equipas multidisciplinares adaptadas ao nível de complexidade e coordenadas entre elas é essencial para que se possam diminuir estes números. Vários estudos apontam para eficácia desta estratégia na redução direta das complicações, nomeadamente das amputações, sendo ao mesmo tempo menos onerosas a médio e longo prazo para o Sistema Nacional de Saúde.

 

A dinâmica destas consultas pode ocorrer tendo todos os elementos presentes sensivelmente no mesmo espaço ou através de referenciação privilegiada entres os diferentes membros através de protocolos claramente estabelecidos.

 

 

"...um trabalho em equipa organizado e harmonioso é essencial para maximizar o sucesso desta batalha..."

 

 

São imensas as competências necessárias para a prevenção e tratamento de complicações a nível do Pé Diabético, todos os profissionais são essenciais e um trabalho em equipa organizado e harmonioso é essencial para maximizar o sucesso desta batalha incessante e tão importante.

 

O Podologista como profissional de Saúde que estuda, previne, diagnostica e trata as alterações dos pés e as suas repercussões no corpo humana possui uma visão única e competências específicas, tal como os restantes profissionais, que poderão trazer benefícios importantes para os resultados destas equipas.

 

O percurso da Podologia a nível internacional tem sido longo. A primeira sociedade de quiropodistas, atualmente conhecidos como podiatras nos Estados Unidos da América, foi estabelecida em Nova-York em 1895 e ainda continuando em atividade até aos dias de hoje como New York State Podiatric Medical Association. A primeira escola (New York School of Chiropody) abriu em 1911 e um ano mais tarde, em Inglaterra, estabeleceu-se a sociedade no “London Foot Hospital” e a escola foi formada em 1919. Na Austrália a primeira associação profissional surgiu em 1924.

 

Em 1947 foi criada a Federation Internationale des Podologues, incluindo Podologistas da Bélgica, França e Suíça. Ao longo do tempo foram incluídos nesta federação a Áustria, Dinamarca, Alemanha, Finlândia, Itália, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia e Reino Unido. Em 2016 o seu nome foi alterado para International Federation of Podiatrists – Fédération Internationale des Podologues.

 

 

"O primeiro jornal Americano de Podologia surgiu em 1907 seguindo-se o do Reino Unido em 1912"

 

 

Em Portugal, o curso de Podologia teve início em 1994. No entanto, só em 1997 foi reconhecido e atribuído o grau de Bacharel em Podologia e em 2001 o grau de Licenciatura. Atualmente, na sua licenciatura, com uma duração de 4 anos, são ministradas unidades teóricas e práticas sobre as temáticas da anatomia e fisiologia humana, biomecânica, imagiologia, farmacologia e cirurgia (globalmente minimamente invasiva).

 

Em Espanha, a maioria das consultas especializadas em Pé Diabético, quer a nível hospitalar quer a nível dos cuidados primários, é liderada por um endocrinologista, um podologista ou ambos. No entanto, muitas das restantes consultas não incluem nenhum Podologista.

 

Nos Estados Unidos da América, a abordagem “Toe and Flow” tem sido cada vez mais adotada. Nesta abordagem, de identificação rápida de risco de amputação minor e de necessidade de revascularização o Podologista deve funcionar como o “porteiro” que recebe os pacientes, avalia e referencia para as medidas necessárias para a prevenção da catástrofe.

 

Os Podologistas possuem as competências necessárias para o rastreio e classificação do pé de risco, tratamento de lesões ulcerativas e pré-ulcerativas, avaliação biomecânica, realização de ortóteses digitais e plantares individualizadas e aconselhamento de calçado adequado. Aquilo que se verifica é que se por um lado há Podologistas a quererem trabalhar neste contexto, pelo outro diversos profissionais sentem a falta destes elementos e querem que estes profissionais sejam integrados. No entanto, a integração destes profissionais no Sistema Nacional de Saúde, principalmente nos cuidados de saúde primários, é escassa e cheia de dificuldades.

 

 

"É essencial continuar o nosso percurso de demonstração das competências e vontade de colaborar dos Podologistas..."

 

 

É essencial continuar o nosso percurso de demonstração das competências e vontade de colaborar dos Podologistas, mas também de aprofundar os nossos conhecimentos. A International Federation of Podiatrists – Fédération Internationale des Podologues em conjunto com o D-Foot International desenvolveram um documento essencial sobre as aptidões necessárias para um Podologista ser reconhecido como um membro qualificado para ser integrado numa equipa multidisciplinar a nível internacional intitulado de “POINT: Podiatric Skills for International Diabetic Foot Teams”.

 

Um dos pontos referidos neste documento é a necessidade de realizar investigação e ser capaz de incorporar procedimentos baseados em evidência na nossa prática clínica. Na base de referências da Pubmed entre 2010 e 2020 foram publicados mais de 7500 artigos, o que demonstra o conhecimento necessário e emergente sobre este tópico.

 

Neste problema clínico que é o Pé Diabético cada um dos profissionais deve fazer o seu papel, dando o seu melhor e aplicando as suas competências específicas. Todos os esforços são poucos para tanta complexidade. Terminamos reiterando que todas as nossas energias devem ser focadas em fazer o melhor por cada utente, juntos e aprendendo uns com os outros, permitindo que cada um dê o melhor de si.

 

Como afirma Crew e os seus colegas sobre as consultas de Pé Diabético: “Um membro é uma península e nenhum clínico é uma ilha”!

 

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