DE PANDEMIA PARA ENDEMIA, CRÓNICA DE ANA PAULA NUNES

 

*as opiniões expressas são responsabilidade do autor e não vinculam a ESSCVP-Lisboa

 

Vários países da Europa têm anunciado nas últimas semanas que a situação epidemiológica já não será tratada como uma pandemia, mas sim como uma endemia (1). Na prática, significa que as restrições impostas vão ser eliminadas, dentro das quais estão: a exigência de certificado de vacinação, a proibição de aglomerações em locais públicos e a polémica abolição das máscaras. 

 

Passar de uma pandemia para uma endemia, é passar de uma emergência de saúde pública que afeta vários países em vários continentes, para passar para uma outra situação de saúde pública, que implica esperar que haja sempre um certo número de casos de infeções, para uma determinada patologia infeciosa, numa determinada área geográfica e numa determinada altura do ano. Significa que os números esperados não aumentam, nem diminuem significativamente, porque se atinge uma estabilidade estatística. Mas não podemos esquecer que em saúde os números da estatística são pessoas, e em relação à COVID-19 com ou sem endemia, vão continuar a surgir novos casos de infeções, possibilidade de surgirem novas variantes e pessoas a morrer.

 

Ou seja, ficar em estado de endemia, não é propriamente uma coisa boa, porque esta situação pode significar impossibilidade de eliminar a doença e ela permanecerá connosco para “sempre”. Esta é a opinião de especialistas, que referem que o SARS-CoV-2 não vai desaparecer e irá fazer parte do nosso ecossistema, afetando os seres humanos da mesma forma que outros vírus já nossos conhecidos (2). No entanto, devido à falta de parâmetros que justifiquem com evidência científica as projeções a longo prazo, não se sabe quantos casos de infeção, quantos casos de doença e quantas mortes são espectáveis e aceitáveis, pelo que outros especialistas consideram que é precoce eliminar todas as restrições até agora impostas para impedir os contágios.

 

 

"Havendo cada vez mais países a eliminar as restrições, a única arma que temos é a vacinação."

 

 

Havendo cada vez mais países a eliminar as restrições, a única arma que temos é a vacinação. E esta afirmação está patente no exponencial aumento de casos com a variante Ómicron nos meses de dezembro de 2021 e janeiro e fevereiro de 2022, que não foi acompanhada pelo aumento proporcional de casos de doença grave e de mortes. Neste momento, o mais importante é diminuir a incidência e isso consegue-se vacinando o maior número possível de pessoas de todos os continentes que ainda não foram vacinadas e, reforçando as doses da vacina dos que já foram vacinados (3).

 

O sucesso da vacinação está também patente nos números da taxa de mortalidade, tendo a COVID-19 atingido uma taxa de 1 a 2% quando ainda não havia vacinas, baixado para uma taxa de 0,25%, no final de 2021, quando cerca de 53% da população mundial já estava vacinada com uma segunda dose. Ou seja, dez vezes menos que em 2020. Contudo, a COVID-19 nunca foi e continua a não ser uma pequena gripe, porque apesar da diminuição da taxa de mortalidade, ainda é, o dobro da taxa de mortalidade provocada pela gripe que é de 0,1% (4).

 

As medidas de restrição impostas por todos os países, mostraram-se até agora eficazes e salvaram vidas, numa altura da pandemia em que ainda não havia um número significativo de pessoas imunizada. Mas como os vírus não são sensíveis a determinações políticas, o SARS-CoV-2 vai continuar a circular e a infetar pessoas, sendo as pessoas não vacinadas as mais vulneráveis. Neste sentido, devemos incentivar a vacinação e continuar a capacitar todas as pessoas através de informação fidedigna e atualizada, para que sempre que apresentem sintomas, adotem as medidas que já conhecemos: usar máscara, manter o distanciamento físico, arejar os espaços fechados e higienizar as mãos com regularidade. Todos temos uma responsabilidade individual de adotar comportamentos que já sabemos serem eficazes e eticamente recomendados.

 

 

"..a vigilância epidemiológica deve continuar de forma sentinela."

 

 

Entrar em fase de endemia não significa ter um otimismo irrealista e, em função dele não fazer o que deve ser feito. Aceitar sem medidas adequadas que ficaremos um dia todos infetados e desta forma aumentarmos a nossa imunidade, pode significar mais variantes, anos da presença do vírus, novos surtos e mais mortes. Por este motivo, a vigilância epidemiológica deve continuar de forma sentinela, para que atempadamente se possa intervir do ponto de vista estratégico, tático e operacional, evitando assim criar novas oportunidades para que o vírus sofra mutações. Para além deste aspeto, é fundamental monitorizar os designados casos de COVID pós-aguda, ou longa, ou prolongada (5, 6). As sequelas multiorgânicas da doença têm um impacto significativo num número elevado de pessoas, mas há que prever para intervir, de que forma os serviços de saúde podem dar resposta a esta situação. Intervir significa melhorar as infraestruturas de cuidados em regime ambulatório, novos modelos de assistência e uma cooperação interdisciplinar integral.

 

A associar às medidas individuais e às de vigilância epidemiológica, devem ser intensificados os estudos da eficácia em larga escala dos novos medicamentos para a COVID-19 e o melhoramento das vacinas (1), uma vez que são fatores que terão impacto no futuro da relação entre a imunidade humana e a ameaçadora capacidade de evolução do coronavírus.

 

Se as medidas de eliminação das restrições em pleno aumento de casos pela variante Ómicron são ajustadas, só o saberemos mais tarde, mas o risco está presente. O futuro da pandemia que todos querem passar para endemia, depende de fatores sobre os quais não temos qualquer controlo. Até se saber se as medidas são proporcionais aos objetivos que se quer atingir, podemos ter mais variantes, as mutações podem ter impacto na eficácia das vacinas e como consequência desta luta assimétrica entre humanos e o SARS-CoV-2, pode haver mais pessoas doentes, mais mortes e sistemas de saúde com problemas na capacidade de resposta. Os cenários do futuro estão todos em aberto, mas nenhum país pode alegar que não sabe o que pode acontecer e que medidas de prevenção deve adotar.

 

Se no início da pandemia o lema era: Testar! Testar! Testar! Agora tem que ser: Testar e Vacinar! Vacinar! Vacinar!

 

Ana Paula Nunes

Docente na Área de Saúde de Enfermagem


 

(1) Biernath, A. O que muda na prática se a covid virar endemia? BBC News Brasil em São Paulo. 2022; 8 fevereiro

(2) Katzourakis, A. COVID-19: endemic doesn’t mean harmless. Nature. 2022; 24 January

(3) World Health Organization. Malaria. 2021; 6 december 

(4) Murray, C. COVID-19 will continue but the end of the pandemic is near. The Lancet. 2022; January 29; Volume 399, ISSUE 10323: 417-419. DOI

(5) Nalbandian, A. et al. Post-acute COVID-19 syndrome. Nat Med. 2021; march, 22; 27, 601–615

(6) Mehandru, S., Merad, M. Pathological sequelae of long-haul COVID. Nat Immunol. 2022; february, 1; 23, 194–202. 

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