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As opiniões expressas são responsabilidade do autor e não vinculam a Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa-Lisboa
A eutanásia é um tema de uma enorme complexidade ética e humana. Apesar de ser um tema constantemente polarizado e politizado, a eutanásia não é um debate entre os que são contra a morte e os que são a favor da morte.
Independentemente de não concordarmos com alguns aspetos apresentados por ambas as posições, acreditamos na seriedade com que o tema é debatido, e acreditamos que ambas as posições o fazem por compaixão. Ambos os lados se preocupam com o sofrimento e ambos têm os mesmos objetivos, as soluções encontradas é que são diferentes.
Mas se o debate sobre a eutanásia não é político, também não é religioso. Debater a eutanásia com congruência, é enquadrá-la no domínio do que é de todos, a ética e a bioética. Independentemente da sua intersubjetividade, é um tema que carece de uma reflexão mais objetiva, do que emotiva.
Quando se debate a eutanásia, parece que não estamos todos a falar da mesma coisa, e neste sentido, é fundamental clarificar conceitos, uma vez que a língua portuguesa é rica, versátil e cheia de significados, que nos podem enganar.
A palavra eutanásia vem do grego. O seu prefixo – eu – quer dizer boa e o seu sufixo thanatos (o deus da morte), quer dizer morte. Assim, é traduzida como boa morte. Para os defensores desta posição, isto significa que matar doentes a seu pedido, é proporcionar-lhes uma boa morte.
Quando refletimos sobre este tema, parece que não saímos da ordem das ideias e das posições filosóficas. Mas a eutanásia é uma realidade muito objetiva e operacional. Trata-se do ato de um profissional de saúde, que num enquadramento legal, acolhe o pedido, administra uma substância, que tem como objetivo provocar a morte, sendo esta a pedido do doente.
Clarificar o conceito de eutanásia, é tão importante como explicar o que não é eutanásia. Passamos a apresentar alguns conceitos que surgem sempre neste debate trazido pelas diferentes posições, e que são: a eutanásia voluntária, a eutanásia involuntária, a distanásia, “desligar as máquinas”, a morte assistida e o testamento vital.
1 – Identificar tipologias na eutanásia, é esquecer que esta só tem um tipo. É ativa, direta, com objetivo de provocar a morte e executada por quem a lei permite. Por isso, não faz sentido falar em eutanásia voluntária, uma vez que a exigência legal implica um pedido repetidamente reiterado e um consentimento explicito e escrito. Não faz sentido falar em eutanásia involuntária, porque se não estamos a incluir nesta equação, a vontade e a autodeterminação da pessoa, estamos a falar de homicídio.
2 - Não faz sentido contrapor o conceito de eutanásia, ao conceito de distanásia. A distanásia visa uma obstinação terapêutica, ou uma futilidade terapêutica, usando meios e métodos, que não vão proporcionar um bem à pessoa em sofrimento, porque é uma prática que atua de forma excessiva e por isso não proporcional, com o intuito de preservar a vida de forma artificial. A distanásia, que vem do grego e quer dizer “morte defeituosa”, é uma má prática, não respeita a dignidade da pessoa e não é eticamente aceitável.
É também importante clarificar, que quem não faz distanásia, não está a fazer eutanásia. Renunciar a intervenções desproporcionadas em relação aos objetivos que se pretendem atingir, é aceitar a vulnerabilidade da finitude humana. A distanásia é uma má prática, que tem que ser eliminada e combatida, com conhecimento científico, ético, deontológico e bom senso.
3 – Também não faz sentido dizer que o ato de “desligar as máquinas”, é fazer eutanásia. “Desligar as máquinas”, é habitualmente sinónimo de desligar o ventilador e implica uma decisão muito bem ponderada em equipa multidisciplinar, num modelo transdisciplinar, onde a situação clínica, o prognóstico, os princípios éticos e o respeito pela dignidade estão presentes.
“Desligar as máquinas”, é agir de forma proporcional à situação clínica apresentada. Desligar ou não ligar os doentes às máquinas, está ao mesmo nível na dimensão ética. Significa que uma intervenção na base da tecnologia para prolongar a vida de forma artificial, sem que dai advenha um benefício para o doente, não é respeitar a sua dignidade. É sim, desvalorizar tudo o que aquela vida representa. Reconhecer os limites da ciência e a forma como pode intervir nos limites do corpo humano, é um ato de humildade, profissionalismo e maturidade ética.
4 – Eutanásia, não pode ser sinónimo de morte assistida. Assistir e acompanhar no processo de morte, é da responsabilidade dos enfermeiros, que o fazem de uma forma digna, profissional e com compaixão. Não podemos aceitar que uma legislação, que permite matar um doente a seu pedido, se designe, da mesma forma, que uma das mais nobres intervenções em enfermagem, que é assistir à morte e cuidar até à última sístole.
5 – Referir que o testamento vital nada mais é que uma permissão velada para a eutanásia, é desrespeitar a autonomia do doente, que tanto se quer preservar neste debate. Recusar tratamentos não é querer eutanásia, é mesmo só não querer tratamentos. A recusa de tratamentos é um direito dos doentes. Cabe aos profissionais de saúde compreender porque que é que há a recusa, no sentido de encontrar estratégias para ir ao encontro dos interesses do doente.
A defesa da eutanásia, invoca argumentos que também carecem de ser refletidos. Assim, quem a advoga, avança com a defesa da dignidade, da autonomia, da liberdade e o fim do sofrimento intolerável da pessoa que a solicita.
1 - Ao referir que o doente tem direito a morrer com dignidade, é esquecer que a dignidade não é perdida em nenhum momento, nem mesmo noutras formas de morrer. A dignidade de uma pessoa não é atribuída pelo outro, mas sim reconhecida pelo outro. Não há critérios para atribuir dignidade, todos os seres humanos têm dignidade, simplesmente porque esta é intrínseca aos seres humanos. Não há mais dignidade na eutanásia do que nos outros tipos de morte.
2 - Outro aspeto mencionado no debate sobre eutanásia é o direito de manter a autonomia do doente. Para que este argumento seja válido, temos que reconhecer a autonomia do doente, em todas as circunstâncias e em todos os procedimentos. Será que no dia a dia dos serviços de saúde, os intervenientes valorizam os doentes como seres pensantes e com vontade própria? Permitir a eutanásia, não é nada mais, nada menos, que entregar a autonomia. Se um doente não vê reconhecida a sua autonomia ao solicitar uma amputação de um órgão são, como justificar eticamente o pedido para ser morto.
3 - A liberdade é um dos maiores porta estandartes da defesa da eutanásia. Como se mantem a liberdade entregando o fim da vida a outro? Se se apela à eutanásia como a forma de apelo ao último estado de liberdade como vontade legitima de acabar com o sofrimento, esquecemos que nada aprisiona tanto como o sofrimento.
4 - O fim do sofrimento intolerável, como argumento para legislar a eutanásia é de todos o argumento, o mais perverso. Não é, sob ponto de vista nenhum aceitável, provocar a morte, mesmo que seja a pedido, eliminando o doente para eliminar o sofrimento. Que autonomia e capacidade para tomar decisões, tem alguém que está num sofrimento intolerável?
Considerar natural que um doente esteja em sofrimento intolerável e por isso considerar legitimo que ele peça para morrer, é inaceitável. Porque o sofrimento intolerável, não é tolerável. Se há sofrimento intolerável é porque alguém está a falhar. Mesmo sabendo que não é possível eliminar todo o tipo de sofrimento, cabe a todos os intervenientes, a obrigação de que pelo menos não seja intolerável.
Perante um sofrimento intolerável, o principal direito do doente é não estar em sofrimento intolerável e o principal dever dos profissionais de saúde é evitar que o sofrimento alguma vez venha a ficar intolerável. Não podemos desistir de cuidar para evitar qualquer tipo de sofrimento. E quando não for mais possível eliminar todo o sofrimento, cabe a todos nós, atribuir-lhe significado e dar-lhe um sentido. A morte não é um fracasso da medicina e da enfermagem, mas a falta de cuidado, é.
Sendo um tema humano que pertence e diz respeito a toda a sociedade, a eutanásia passa essencialmente pelos profissionais de saúde. São os profissionais de saúde que cuidam, são os que testemunham o sofrimento, são os que têm conhecimentos e meios para identificar e acabar com o sofrimento, são os que acolhem o pedido de eutanásia, e em caso de legalização, são quem executa o pedido.
Neste sentido, os profissionais de saúde são o grupo de pessoas da sociedade que mais deveria debater e promover reflexões sobre a eutanásia. Os profissionais que acolhem o pedido, devem considera-lo uma urgência, pois tudo o que o doente nos está a dizer, é que assim não consegue viver. Esta ambivalência leva-nos ao princípio da precaução. Quantas pessoas que sobreviveram a uma tentativa de suicídio, se arrependeram do ato? Na eutanásia, não há tempo para mudar de ideias, porque no último momento, a autonomia foi entregue a outro.
É fundamental dar atenção aos países em que a eutanásia está legalizada ou despenalizada, para verificarmos: que os pedidos explícitos são cada vez menos respeitados; que a situação de excecionalidade da intervenção está cada vez mais banalizada; que há cada vez mais pessoas que não estão em situação de fim de vida e sem doença fatal a serem eutanasiadas; que há doentes a serem eutanasiados porque têm má qualidade de vida, segundo os critérios do seu médico; que a dor em doentes oncológicos justifica a eutanásia; que há cada vez mais doentes com perda de autonomia e em situação de solidão, que são eutanasiados.
É sempre oportuno debater temas importantes. E falar sobre eutanásia em qualquer momento, é fundamental para esclarecer dúvidas, incertezas e inquietações. Mas seria muito mais oportuno falar sobre eutanásia, depois: de termos uma rede de cuidados paliativos de adultos e pediátricos, onde todos podem ter acesso a este direito de forma precoce; de termos uma formação generalizada a todos os profissionais de saúde sobre cuidados paliativos e intervenções para a dor; de termos controlado a iliteracia em saúde; de aferirmos conceitos para que possamos estar todos a falar de assuntos importantes sem enviesamentos gramaticais; e, de todos cumprirmos os respetivos códigos deontológicos e princípios éticos.
Muitas questões ficarão sempre por responder, e essas são as questões determinantes para se encontrar uma solução. Se não vejamos como conseguimos responder a estas: Se a eutanásia é a boa morte, será que estamos a cometer erros no acompanhamento na morte dos doentes que morrem naturalmente? Como avaliamos o sofrimento intolerável, se ele nem sequer deveria existir? Quem tem competência para avaliar o sofrimento e como o vai mensurar? Para que um pedido de eutanásia seja considerado sério e consistente, quantas vezes o doente o deve solicitar?
Que desafios esperam os médicos para corresponder a esta prática? Que desafios esperam os enfermeiros se for uma intervenção interdependente? Que alterações teóricas e técnicas são necessárias implementar na formação destes profissionais de saúde? O estado deverá apenas permitir a eutanásia ou deveremos ter no orçamento de estado verba para a praticar? Se aceitamos a eutanásia a pedido, porque fazemos tudo para salvar uma pessoa que tentou o suicídio? Será que é mesmo eutanásia que queremos designar à morte a pedido?
À luz do artigo 134º do Código Penal, não será mais honesto chamar homicídio a pedido e consentido?
Autora
Docente Ana Paula Nunes
Área de Ensino de Enfermagem